Um olhar Winnicottiano sobre o tempo da criança na intervenção judicial

Neste tempo em que comemoramos o 33º aniversário, da Convenção dos Direitos da Criança, faz-me sentido reforçar que o tempo das crianças não se assemelha nem se compadece com o tempo dos seus cuidadores. Nesta sequência, destaco a importância do tempo de relação como construto da saúde mental e reforço a importância do tempo psicológico e do tempo real como promotores do desenvolvimento da criança, existindo inevitavelmente, uma relação entre o Tempo, o Ser e o Estar.

Na intervenção judicial, em matéria da promoção e proteção dos direitos da criança, às equipas de Assessoria Técnica aos Tribunais, são diariamente solicitadas avaliações diagnósticas relativas às necessidades da criança e da sua família bem como do ambiente que as rodeia, conforme preconizado no modelo Ecológico que sustenta a intervenção. Urge, temporalmente, o delineamento de ações a serem executadas com enfoque na mudança, num tempo útil e desejável para a criança. Como ponto de partida, o levantamento das necessidades identificadas na criança e os fatores de perigo e de proteção. No sistema familiar, a avaliação desenrola-se no mesmo sentido, centrada nos vários domínios das competências parentais e na qualidade do exercício da parentalidade.

Há uma temporalidade necessária neste processo de mudança e que nem sempre é compatível com o tempo e as necessidades das crianças, sobretudo as de ordem afetiva, que assentam na qualidade das relações e dos vínculos estabelecidos. Em alguns casos, os vínculos têm que ser potenciados e fomentados.

Com Winnicott, percebemos que numa fase inicial do desenvolvimento da criança há uma dependência absoluta em relação ao ambiente físico e emocional. Gradualmente, a dependência torna-se em certa medida reconhecida pela criança, que em consequência, adquire a capacidade de fazer saber ao ambiente quando necessita de atenção. A mãe ou o cuidador de referência, terá de ser capaz de se adaptar às necessidades da criança, que poderão ser variáveis e crescentes. A criança vai sendo capaz de manter viva a ideia da sua mãe e a qualidade do cuidado que se acostumou a receber.

A progressão da dependência à independência só poderá ocorrer de forma saudável se numa outra pessoa, normalmente a mãe ou outro adulto cuidador, se processe uma adaptação muito sensível às necessidades da criança, sendo imperiosa a presença de condições ambientais que promovam que este processo se desenrole.

Com cerca de um ano, já existe uma íntima relação entre a psique e o soma. Tal acontece em estádios iniciais e exige um grau de adaptação razoável às necessidades da criança. Winnicott fala-nos da “preocupação materna primária”, capacidade que está relacionada com o fato de a mãe ser capaz de desviar o interesse do seu próprio Self, para o do bebé.

Só na presença de uma mãe suficientemente boa, a criança poderá iniciar um processo de desenvolvimento pessoal e real.  Se os cuidados maternos não forem suficientemente bons, o Self verdadeiro da criança não se conseguirá formar, ou poderá permanecer oculto por meio de um falso Self que se constrói.

Às famílias, são exigidos tempos na concretizações de ações, nem sempre são possíveis de executar, face a uma multiplicidade de fatores tais como: as capacidades internas e pessoais dos cuidadores; as caraterísticas de  personalidade e a história pessoal de cada individuo; aspetos associados à transgeracionalidade de padrões familiares e comportamentais; questões de ordem social, económica e habitacional; ausência de suporte familiar e de rede informal; ausência de serviços de acompanhamento ou falta de respostas destes, em tempo útil e que muitas vezes comprometem o tempo da criança ao direito a ter uma família capaz de lhe providenciar condições protetoras, de segurança, estáveis, permanentes, previsíveis, constantes e afetivas.

Levantam-se questões que estão diretamente relacionadas com a temporalidade da intervenção judicial. É possível que se instale a mudança necessária, promotora de alterações significativas e satisfatórias para o exercício de uma parentalidade responsável? Se sim, em que tempos? Serão esses tempos razoáveis no desenvolvimento da criança?

A extensão do tempo da intervenção, focado sobretudo nas necessidades dos adultos cuidadores, a que nível comprometerá o desenvolvimento psicoafectivo da criança, sobretudo das que se encontram com medidas de acolhimento residencial?

O que fica comprometido, com a prorrogação do tempo das medidas de acolhimento residencial centrado na procura de novos elementos familiares, alternativos à família nuclear, cujo vínculo afetivo é empobrecido ou praticamente inexistente?

Sabemos que um holding deficiente produz uma extrema aflição na criança, potenciando uma sensação de despedaçamento ou de estar caindo num poço sem fundo, acompanhado de um sentimento em que a realidade exterior não pode ser usada para reconforto interno.

Winnicott, pensa o desenvolvimento, como uma função da herança de um processo de maturação e da acumulação de experiências de vida, que carece de um ambiente propiciador que, de início, tem uma importância absoluta e a seguir relativa, num caminhar rumo à independência.

Neste propósito, importa não esquecer que a qualidade do tempo está diretamente relacionada com a qualidade da relação, com a escuta atenta, com a capacidade empática com o outro, com a vivência de experiências em comum e que vão fazer parte do universo da memória afetiva de alguém. O tempo da relação fica para sempre inscrito em nós, sendo desejável que seja de qualidade e contínuo.

A construção e alimentação das emoções só acontece com o tempo real. Vemos nas intervenções, que há cuidadores que têm de facto tempo real, mas carece o tempo psicológico no investimento da relação.

Quanto mais pequenas são as crianças, mais a exigência temporal é uma realidade. As experiências relacionais disfuncionais têm nesta fase do desenvolvimento a capacidade de em tempo real curto, fazer estragos irreversíveis no psiquismo e no desenvolvimento psicossomático.

Nas famílias, percebemos que o tempo físico se esgota numa vida cheia de objetivos funcionais. Fica a faltar tempo para dar espaço, para estar e ficar inscrito na construção do Outro, no que lhe confere um sentido de Ser. Não esqueçamos que é a experiência básica que nos constrói, que nos sustenta, nos integra e nos permite brincar, sendo pessoa inteira no mundo e desenvolvermos a nossa individualidade.

A intervenção judicial visa a remoção do perigo em que a criança se encontra, proporcionar a prevenção de reincidências e a compensação das consequências relativamente a essas situações. Nas situações de acolhimento residencial, quanto mais longa for a experiência de acolhimento, menor serão as oportunidades daquela criança em se desenvolver e crescer num ambiente familiar. Por isso, urge repensar alternativas à família biológica que permitam à criança, ter acesso a um ambiente suficientemente bom e familiar, num futuro célere.

Quanto mais idade tiver a criança, maior será a dificuldade de voltar a reintegrá-la nos hábitos e rotinas familiares por já ter adquirido as normas estabelecidas na instituição. Por outro lado, também as famílias terão dificuldade em restabelecer laços, sobretudo com os adolescentes, face à faixa etária dos mesmos e às vicissitudes da própria etapa de desenvolvimento em si.

No acolhimento prolongado, observamos jovens que não conseguem estabelecer o sentido de pertença à instituição. Recorrem a fugas por períodos longos, revelando por meio dos comportamentos agidos um sofrimento associado à espera que os desintegra internamente.

As crianças sonham e idealizam a sua família. Anseiam pelas mudanças exigidas aos adultos que tardam em emergir ou em se consolidar. Muitos destes movimentos são por si só insuficientes, pela inconstância e pela inconsistência.

Também observamos modelos transgeracionais cujos padrões relacionais assentam numa funcionalidade oca, onde lhes falta a profundidade afetiva, a ausência do cuidado centrado na criança como prioridade, falta a previsibilidade e não há constância.

Como diz Winnicott, a base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, continuidade em que está implícita a ideia de que nada daquilo que faz parte da experiência do indivíduo se perde, e o tempo, é uma conquista no processo de amadurecimento já que se trata de um tempo vivo, necessário à existência.

O tempo de relação fica inscrito em nós e é por isso mesmo desejável que seja contínuo e de qualidade pois só nesse tempo, de qualidade afetiva, será possível o sentido de existência real.

Alexandra Luz Clara

Bibliografia:

D.W.Winnicott (2018) “A Família e o Desenvolvimento Individual”. São Paulo, Martins Fontes.

Alexandra Luz Clara

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