Ser-se Winnicott, mais do que uma escolha, um sentido de vida

Corria o ano de 1957 e Winnicott apresentava, numa reunião da Sociedade Britânica de Psicanálise, um dos artigos que mais marcou o meu percurso como psicanalista: “A capacidade de estar só”. O outro, escrito doze anos mais tarde, foi “O uso de um objeto e relacionamento através de identificações”, publicado em O brincar e a realidade, mas lido também na Sociedade Britânica de Psicanálise, em 1969.

O primeiro fala da capacidade mais nobre da arte de quem pratica a cura pelo cuidado: a capacidade de estar só na presença do outro; que significa, a meu ver, a capacidade de se oferecer como presença humana que, embora viva e singular, respeita o tempo e o ritmo do outro; mantendo-se ao alcance sem invadir. O segundo fala daquela que é, na minha opinião, a mais preciosa contribuição de Winnicott – a par com a descrição dos vários tipos de ambiente: a sua teoria da agressividade e respetiva ligação com o “brincar” e com o acesso à realidade. A extensão desta nova leitura é incomensurável, pois retira a agressividade do domínio da pulsão de morte e da resposta reativa; libertando-a definitivamente da sua associação com a doença e com os estados patológicos, colocando-a no centro da saúde e confirmando a diferenciação da sua perspectiva com a psicanálise clássica (freudiana). Se não estivesse claro antes, fica agora claro que a psicanálise Winnicottiana, apesar de inscrita na tradição, rompe com o modelo clássico, operando uma mudança radical no modo de compreender o ser humano e no modo de fazer clínica. Além do mais pōe fim ao primeiro dos três mitos que identifico na origem das más interpretações da sua obra. A saber, a confusão entre cuidado/confiabilidade e sentimentalismo – e sequentes leituras deformadas sobre o conceito de “mãe suficientemente boa”, “handling”, “holding” etc.

O segundo mito é o fantasma da doutrinação e o terceiro, a simplicidade do seu pensamento. São, na minha opinião, os três grandes equívocos que recaem sobre leituras apressadas de uma obra razoavelmente complexa. Dos dois últimos, falarei um pouco mais adiante.

Creio que foram estes dois artigos, despertados em mim pela via da clínica, que me fizeram curiosa sobre o pensamento de Winnicott – desde os tempos mais primitivos da minha formação para psicanalista – e me fizeram querer saber mais; para além daquela primeira leitura (leve e agradável) ainda dos tempos de faculdade.

Tive a sorte de encontrar, no caminho, o supervisor português que embora não se intitulasse dessa forma era, sem sombra de dúvida, o mais Winnicottiano de todos os supervisores dos meus tempos de estudante: Coimbra de Matos. Com ele pude ser eu-mesma; mesmo que isso fosse (e era muitas vezes) ser diferente dele. Outras vezes éramos irremediavelmente parecidos.

O encontro com a clínica, sempre só, ainda que permanentemente acompanhado, foi muitas vezes sustentado no calor do consultório deste meu Mestre. Com ele aprendi a importância que um supervisor (e que uma boa supervisão) tem na sustentação deste tão belo, mas simultaneamente tão delicado ofício. Lembro-me que, quando lhe levava “casos difíceis” – que, ele próprio me encaminhava, dizendo, com o sorriso que o caracterizava, “este só pode ser para si ou para mim, como eu não posso, fica você” – que desencadeava em mim uma explosão de gargalhadas (e, por consequência, nele também) – que, não raras as vezes, nos emocionávamos, pelo encontro clínico/humano, entre mim e o meu paciente; entre mim e ele (meu supervisor). Nada disto se resumia à talking cure preconizada pela psicanálise clássica. Era muito mais do que isso; era uma care cure (na feliz expressão de Loparic), também ali, no contexto da supervisão – porque não? -; sustentando a care cure a que me propunha no contexto clínico. Talvez por isso; mesmo não sendo Winnicottiano, tenha sido ele, o meu primeiro Mestre Winnicottiano. Na verdade, com ele encontrei o caminho; sem que ele nunca me o tenha mostrado. E foi assim que, nascida Coimbriana, me fiz Winnicottiana por minha conta e risco.

Quando comecei a pegar nos ditos “casos difíceis”, comecei a perceber, pela experiência do encontro humano, que a teoria clássica era extremamente insuficiente e mesmo nociva (em algumas situações) e tive necessidade de sustentar essas descobertas num enquadramento teórico mais coerente com o que me era exigido pela clínica. Isso implicava uma forma de pensar a psicanálise radicalmente nova; um novo paradigma, como lhe chamou Loparic, apoiado nas concepções de Kuhn – e isso, eu só encontrei em Winnicott, apesar de ter percorrido os principais autores da psicanálise; nomeadamente, o contributo preciso dos autores do middle group, assim como os autores provenientes da escola Kleiniana ou mesmo os mais diretamente derivados da psicanálise freudiana. Nenhum deles me respondeu de forma tão completa como Winnicott.

Percebi que – mesmo quando certas – algumas interpretações não podiam ser ditas. Percebi também que, muito mais importante do que o que eu dizia, era efetivamente quem eu era. Era a minha dedicação e autenticidade que importavam; pois por mais adoecido que estivesse, era sempre isso o que estava na base da cura do paciente; da sua saída do sofrimento; da retoma do amadurecimento suspenso; do encontro com a vida com todas as suas dores e aflições, mas válida em si mesmo. E era assim que, muitas vezes, aquilo que parecia impossível se revelava afinal possível. Para isso, foi preciso mergulhar em mim própria e não ter medo de pedir ajuda para descer ao mais tenebroso de mim. O caminho da clínica é sempre percorrido a partir de nós mesmos – o motor da análise é a contratransferência. E, se nos mantivermos vivos, presentes e atentos – “apesar de” e incluindo as nossas dores – dificuldades surgirão, mas virão também alegrias para no fim vermos que tudo afinal valeu a pena. “O psicanalista vale mais pelo que é do que pelo que sabe”, dizia tantas vezes Coimbra de Matos, lembrando o psicanalista lutador da resistência, Sacha Nacht.

Para compreender a doença, comecei por procurar entender a saúde. Iniciei um percurso solitário no estudo sistemático e aprofundado do pensamento de Winnicott. De início, de forma completamente autodidata; mas sempre a partir dos problemas que me surgiam na clínica – percurso muitas vezes mal-entendido, pois, tive que lidar com o segundo mito presente no pensamento psicanalítico português; o fantasma de que estudar a fundo um autor é ficar doutrinado. Não é. Isso será apenas para quem procura doutrinação; não para quem sabe usar objetos e tem pensamento crítico. Estudar a fundo um autor, pelo contrário, é o que nos permite conhecer melhor todos os outros. Nunca antes de me dedicar ao estudo aprofundado do pensamento de Winnicott, tinha compreendido tão bem as propostas de Freud, Ferenczi, Fairbairn, Khout, e tantos outros…  

Vamos ao terceiro mito. O mito da simplicidade. A obra de Winnicott não é simples. Ela é de fácil acesso, sobretudo num primeiro tempo (numa primeira leitura), pois nasce da experiência viva do contacto com a realidade humana (quer a partir da psicanálise, quer a partir da pediatria). Portanto, vai ao encontro daquilo que, sem pensar, todos nós, subjetivamente, já sabemos; ela encontra-nos ao mesmo tempo que por nós é encontrada; foi escrita para cada um de nós. Masud Khan dizia, na sua introdução ao livro Da Pediatria à Psicanálise,que cada um de nós tem o seu Winnicott – ainda que ele seja tão radicalmente ele próprio, único e impermeável a deformações estruturais. Por isso é que a simplicidade da sua obra se reduz àquele primeiro momento de ilusão de omnipotência. Depois, é preciso sair do registo subjetivo e ir mais além. Brincar com ela, aprofundando-a, até chegarmos ao que ela verdadeiramente nos transmite; a uma realidade compartilhada por todos nós que investigamos o seu pensamento, ainda que única para cada um de nós. Na saúde, o acesso à realidade é assim mesmo. Dá-se pelo paradoxo da destruição do objeto subjetivo, que acaba com a omnipotência mas não com a ilusão. Por isso é que o estudo aprofundado de Winnicott não é obsessivo nem enfadonho. Ele é leve, mas arrasadoramente profundo. A complexidade da sua obra dá-se por camadas, tal qual a apresentação da realidade em pequenas doses. Por isso, não se iludam, quanto mais estudarem mais terão para descobrir, aprender e criar! É assim, a escrita e a personalidade de Winnicott; feita de paradoxos; simples, mas complexa; leve, mas profunda; espontânea, mas não impulsiva; absolutamente séria, mas só acessível pelo brincar.

Em 2013 conheço Elsa Oliveira Dias e Zéljko Loparic e passei a poder partilhar o meu estudo, as minhas dúvidas, as minhas inquietações. Agradeço a Elsa Oliveira Dias o excelente trabalho de sistematização da teoria do amadurecimento de Donald Winnicott, guia de estudo a toda a comunidade Winnicottiana e a Zeljko Loparic, a facilitação da leitura do pensamento de Winnicott pelo vértice da filosofia; nomeadamente pela integração entre a leitura do pensamento de Winnicott e a leitura do pensamento de Heidegger. Aos dois, e aos colegas do IBPW em geral, agradeço a interlocução sempre proveitosa e apaixonada.

Em 2017 faço a minha formação no Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana (IBPW). Desbravei terreno, sempre com os olhos postos no sonho (como dizia Coimbra de Matos) – com a cabeça na lua – não sei se sempre com os pés na terra… queria deixar um contributo válido à psicanálise em Portugal, às gerações vindouras, aos colegas que se cruzassem comigo, quer como analisandos quer como supervisandos. Passei a trabalhar com vários ambientes – quer como supervisora, quer como clínica – descobri a paixão pela intervenção familiar e pela terapia de casal. Além de psicanalista, tornei-me surpervisora assumidamente Winnicottiana. Procurei auxílio na filosofia – sentia que precisava de um enquadramento mais amplo para o pensamento de Winnicott; nomeadamente, no que diz respeito ao aspecto ontológico envolvido na experiência de ser e continuar a ser. Cruzei-me com Irene Borges Duarte; a quem agradeço, não só, o primeiro contacto com os colegas do IBPW, como também o percurso feito na fenomenologia e nomeadamente, na introdução ao pensamento de Heidegger. A minha incursão na filosofia permitiu-me um distanciamento, para mim necessário, do pensamento psicanalítico. Descobri a importância do rigor dos conceitos e da desconstrução de um saber já feito e, muitas vezes, pouco pensado. Olhei de fora para poder voltar a olhar de dentro, sempre com os olhos postos no humano; no seu amadurecimento, no seu adoecimento, nas suas singularidades, nas suas angústias existenciais, nas suas necessidades mais arcaicas, nos seus desejos mais profundos.

Com o tempo fui criando condições para ir transmitindo a outros colegas o que fui aprendendo. Já era, desde sempre, responsável pelos seminários sobre o pensamento de Winnicott na AP (Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica) e em 2015 formo o Grupo de Estudos sobre o Pensamento de Winnicott (GEW), dentro da AP. Numa fase inicial, debatíamos temas Winnicottianos e contávamos com a participação esporádica de psicanalistas portugueses e brasileiros. Fomos evoluindo, fizemos Simpósios, Congressos e Jornadas, que traziam as últimas novidades pensadas pelos melhores investigadores da obra de Winnicott (nossos parceiros no atual projeto Winnicott-Portugal). Em 2021 estruturei uma formação Winnicottiana organizada para oferecer bases de trabalho a partir da psicanálise Winnicottiana (em curso), não só para psicanalistas, mas para qualquer profissional de saúde, da área da educação, serviço social, etc. Convidei mais colegas para integrar, comigo, uma primeira equipa de formadores. E agora, com o novo projeto Winnicott-Portugal – o Centro de Investigação Winnicott-Portugal – temos finalmente uma equipa de formadores, capaz de transmitir, comigo e para além de mim, o legado Winnicottiano.

Creio que é o caminho de uma vida inteira. Valeu a pena saber estar só, naquele início mais primordial – uma solidão essencial tornada gesto criativo, porque, no tempo certo, ocorreram os encontros certos. Hoje, verdadeiramente acompanhada, mas sempre procurando preservar a solidão individual de cada um (minha e dos outros), estou profundamente grata a todos os que me rodeiam e quiseram fazer parte deste projeto imenso. É, e será sempre, cheia de comoção que vos recebo. De mãos dadas, habitaremos esta esta nova casa; esta nova família que se uniu em torno do ideal de uma psicanálise mais humanista.

Sou imensamente grata a vida, e a todos os colaboradores deste projeto; particularmente, a José Diogo Gonçalves, pelo brilhante trabalho na constituição e elaboração deste site e pela parceria na elaboração deste projeto; a Joana Espírito Santo e Rita Pereira Marques, pelo excelente trabalho, empenho e apoio na coordenação. À nossa equipa de formadores, particularmente a João Justo, que nos surpreende sempre com a sua generosidade e grandeza de carácter. Aos nossos clínicos, primeira célula Winnicottiana da clínica psicanalítica em Portugal. A todos os que, por condicionalismos pessoais ou total impossibilidade, não estão aqui incluídos; mas que estão sempre presentes, pois foram também eles o colo e o substrato deste caminho, nomeadamente, a José Carlos Coelho Rosa, que sempre me apoiou nas minhas iniciativas e a Carlos Amaral Dias que, embora de uma linha teórica completamente diferente, sempre reconheceu o mérito do meu trabalho. A todos os meus colegas da AP, nossa parceira privilegiada, pelo apoio nesta minha iniciativa e pela colaboração que se vislumbra profícua e gratificante. Por fim, agradeço todos, os textos que inauguram este blogue e a todos os que responderam ao meu repto de “escreverem com o coração”.

De coração cheio, iniciemos então esta viagem. Não chegámos ao fim, estamos no começo. São todos muito bem-vindos, os que se quiserem juntar a nós. “Seja bem vindo quem vier por bem”, dizia Zeca Afonso, nosso trovador de Abril. E eu acrescento, seja bem-vindo quem vier com vontade de habitar o único espaço onde é possível ser-se humano: o espaço “entre”, a fenda, no dizer de Heidegger; o único lugar onde o brincar e a realidade são possíveis sem se excluírem mutuamente; o espaço do paradoxo, que é, afinal, o espaço da arte, da cultura e da ciência; único lugar verdadeiramente humano.

Maria do Rosário Belo

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