Vida & Obra

( Winnicott, 7 de Abril 1896 – 25 Janeiro 1971)

Adam Phillips começa a introdução do seu livro Winnicott – um dos livros que mais claramente aproxima a vida e a obra do autor – com uma citação que mostra bem a força do pensamento de Winnicott:

“É muito mais difícil lidar com a saúde do que com a doença” (Winnicott, citado por Phillips, 2006, p. 21).

Numa época em que a psicanálise tenta compreender a doença, e a saúde por oposição à doença, Winnicott pensa a partir de um ângulo completamente diferente, e com inevitáveis consequências para a forma como se pensa o ser humano e os diferentes tecidos sociais. Difícil é lidar com seres humanos saudáveis, afirmativos, contestatários, que pensam e sentem por conta própria, que colocam questões, que levantam problemas, mas também que sabem colocar-se no lugar do outro; e não com seres humanos adoecidos, que se submetem ao outro, que aceitam dependências mortíferas, que se adaptam… 

Não nos será possível neste curto espaço, deixar uma ideia clara do que foi a vida e obra de Winnicott. O nosso interesse é bem mais modesto. Queremos apenas despertar curiosidade, mobilizar a vontade de saber mais, de investigar sobre este autor que, na leitura de Loparic (que é nossa também), revolucionou a Psicanálise.

Donald Woods Winnicott nasceu em Plymouth, a 7 de abril de 1896, na Costa Oeste de Inglaterra. Terceiro de uma fratria de três, e único rapaz, cresce no meio de mulheres (mãe, avó, governanta e irmãs) e no convívio direto com cinco primos (companheiros de infância) que viviam numa casa vizinha. O seu pai, Sir Frederick Winnicott, era um abastado comerciante que recebera o título de nobre e ocupara, por duas vezes, funções semelhantes às de um presidente da câmara da cidade. Absorvido nos seus negócios, terá tido pouco tempo para os filhos. É conhecida a pequena curiosidade, contada por Winnicott de que um dia lhe terá colocado uma questão bíblica que poderia levar a uma discussão infindável, para a qual o pai lhe terá respondido: “Lê a Bíblia e encontrarás a resposta certa”; concluindo que terá sido desta forma que o pai lhe permitiu que se desembaraçasse sozinho. 

Aos 13 anos, Winnicott foi enviado para Cambridge, como aluno interno da Leys School, apaixonando-se desde logo pela biologia Darwiniana e decidindo estudar medicina após ter fraturado uma clavícula, movido pela ideia de adquirir maior independência dos cuidados médicos a que foi sujeito nesta altura.  

Em 1923, já depois de ter sido designado como cirurgião estagiário durante a primeira guerra mundial, orienta-se para a pediatria e para a psicanálise. É também nesta altura que é nomeado médico assistente no Padington Green Children’s Hospital, onde desempenha funções durante 40 anos e onde vê mais de 60 mil casos. 

No mesmo ano inicia a sua primeira análise (que durou 10 anos) com James Strachey e casa com Alice Taylor, uma jovem artista com quem esteve casado até 1949. Em 1951 casa-se com Clare Britton que viria, ela própria, a tornar-se psicanalista, com o nome de Clair Winnicott, ao mesmo tempo que prossegue uma brilhante carreira como professora na London School of Economics e no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Winnicott não teve filhos.

O início da sua formação como psicanalista coincide com a crise violenta no interior da British Psychoanalytical Society (BPS), fundada em 1913 por Ernest Jones, entre as duas principais correntes de pensamento: os kleinianos (liderados por Melanie Klein) e os annafreudianos (liderados por Anna Freud). A principal discórdia girava em torno da psicanálise de crianças (da qual ambas tinham sido fundadoras) e dos métodos usados por uma e por outra. Anna Freud crítica Melanie Klein por fazer corresponder a brincadeira das crianças à livre associação dos adultos, deixando de fora a imaturidade da criança, bem como os fatores ambientais que a rodeiam. Melanie Klein considera que a psicanálise de crianças, tal como a dos adultos, tem que contemplar a dinâmica intrapsíquica e todos os seus conflitos, sendo o seu objetivo (tal como na análise de adultos) o acesso ao complexo de Édipo, ao recalcamento e à angústia de castração; acusando assim Anna Freud de ter uma concepção pedagógica do tratamento de crianças. No meio deste conflito, Melitta Schmideberg, filha de Melanie Klein e analisada por Edward Glover, acusa a mãe de que as suas técnicas se tornavam tirânicas.

Winnicott afirma a sua independência perante estas controvérsias, embora reconhecesse as valiosas contribuições de Klein, com quem faz uma supervisão entre 1935 a 1941, por indicação de Strachey. No entanto, afirma a sua posição perante ela, quando recusa a sua exigência de supervisionar o caso do seu próprio filho (Erich), em análise com Winnicott. 

Entre 1933 e 1938, Winnicott faz uma segunda análise, com Joan Riviere, discípula de Klein, e Claire Winnicott é analisada pela própria Klein.

Saído da tradição psicanalítica, sem negar a sua filiação a Freud e a Klein, Winnicott rompe (ainda que não o diga) com a metapsicologia freudiana; rejeita a ideia de pulsão de morte (amplamente explorada por Klein e seus seguidores, como Bion, por exemplo), e constrói uma teoria da agressividade absolutamente inovadora. Além disso recoloca a importância dos fatores ambientais (de certa forma apontados, ainda que ineficazmente, por Anna Freud) para a compreensão da saúde e da doença – anulada por Freud por altura da carta do equinócio (dirigida a Wilhem Fliess em 1897).

Talvez o seu interesse pela saúde tenha surgido da sua formação como Pediatra e talvez o facto de ter sido médico residente durante a primeira guerra mundial lhe tenha trazido o peso do contexto e do ambiente para a compreensão de sintomas decorrentes da destruição, da morte e da perda. 

Ao contrário do saber psicanalítico clássico (freudiano e pós-freudiano), que procurava explicar o funcionamento humano a partir do intrapsíquico e das suas forças ocultas, Winnicott interessa-se pela observação dos fenómenos, tal como eles se apresentam. Interessa-se por bebés e mães comuns, por lares comuns, de onde saem crianças comuns, e a partir daí, estudava os fatores que estavam na origem da doença; ou seja, os fatores que impediram que acontecesse o esperado – a saúde. 

Este interesse pela saúde e pelas condições que impedem que um estado de saúde normal se manifeste tem origem na sua própria personalidade e encontra-se nos seus interesses intelectuais desde sempre. Por exemplo, no seu interesse pela obra de Darwin, a Origem das Espécies, na qual percebe “que as lacunas no registo evolucionário eram meras interrupções na evidência histórica da continuidade da espécie” (Phillips, 2006, p. 21). 

Toda a sua compreensão do ser humano parte do entendimento dos fenómenos subjacentes à saúde, sendo a doença a manifestação da rotura desses fenómenos, a quebra na continuidade de ser, existir, sentir-se, vivo e real.

Convencido da importância de reforçar e dar suporte ao lar comum britânico, para a manutenção de um tecido social democrático, no início da Segunda Guerra Mundial, e depois mais tarde, no período referente à Guerra Fria – numa altura em que o Mundo se dividia entre o Capitalismo e o Comunismo, sustentado na frágil manutenção do Muro de Berlim – Winnicott começa a escrever as suas primeiras transmissões de rádio para falar com mães, em 1939. Em 1941, inicia o seu trabalho como consultor em Oxfordshire, um abrigo para crianças evacuadas, juntamente com Clare Brinton, assistente social. Esta componente social é extremamente importante na elaboração de conceitos como tendência antissocialdeprivaçãoo valor positivo do sintomaobjetos e fenómenos transicionais, etc…

A Associação Winnicottiana Portuguesa – Centro de Investigação (CIWP) é um espaço de apresentação e discussão dos conceitos inovadores de Winnicott, bem como do impacto do seu pensamento na forma de pensar tudo o que é humano.

De acordo com Loparic, afirmamos, Winnicott coloca a psicanálise numa nova base filosófica. Do Édipo para o “colo da mãe”, do “colo da mãe” para os “braços do pai”, dos “braços do pai” para novos mundos… o homem Winnicottiano é resultado das várias integrações sucessivas, desde o momento mais precoce da concepção – ainda no útero materno – ao derradeiro momento da sua morte. 

De Freud a Winnicott; das causas incondicionadas (Kant) para as bases da  analítica existencial (Heidegger, “Ser e Tempo”), observamos a emergência do homem movido pelo sentido de ser, mais do que pelas paixões ou pelos desejos. Mais do que saber quem se ama ou porque se ama, interessa à Psicanálise Winnicottiana, saber como o Homem se faz Homem e como facilitar esse processo; quer no interior dos gabinetes dos psicanalistas, quer nas instituições que trabalham com crianças e jovens, quer junto dos professores, dos médicos, dos profissionais de saúde em geral e de todos os que, de uma forma ou de outra, lidam com o delicado processo de ser e continuar a ser humano. Porque, acreditem, “é muito mais difícil lidar com a saúde do que com a doença“. Mas vale a pena. 

Bibliografia:
Roudinesco, E. & Plon, M. (2000). Dicionário de Psicanálise. Editorial Inquérito: Mem Martins, Portugal.

Phillips, A. (2013). Winnicott. Editora Ideias & Letras: Perdizes, São Paulo.