Encontro marcado com Margaret Little

Relato do encontro marcado com Margaret Little – visita ao Arquivo da Sociedade Britânica de Psicanálise a 28 de Março 2024 por Rita Pereira Marques

(…) A memory comes
Of such another day, long past (…)
Excerto poema Restlessness de Margaret Little, 1945

Expectativa.

Preparo-me, de manhã, com o sentimento de que o encontro será com uma amiga antiga. Estarei à altura? Confirmo, pela terceira vez, de que tenho comigo tudo o que necessito: IPAD, passaporte, lápis. As indicações do seu guardião Ewan O´Neill foram, à maneira britânica, exatas: “quando chegar, por favor toque na campainha da biblioteca e eu dar-lhe-ei entrada e subiremos até ao 2º andar para a Sala Ernest Jones”.

Direção Arquivo da Sociedade Britânica de Psicanálise do Instituto de Psicanálise 112 A. Shirland Road. Alguma surpresa por me estar a afastar tanto do centro de Londres… Ao chegar dou por mim a esboçar um sorriso: 10:00, pontualidade britânica é caso para, orgulhosamente, dizer.

Um retrato a óleo do pai Sigmund Freud recebemo-nos no corredor da entrada acompanhado, um pouco antes, por uma pintura de Marion Milner. Ao lado do elevador está afixada uma placa metálica com a composição dos 3 andares: o andar central tem logo como primeira sala Donald Winnicott bem como a Clínica de Psicanálise de Londres; no 1º andar encontram-se as salas John Rickman, Wilfred Bion, Anna Freud bem como os gabinetes para consultas; no 2º andar as salas Erich Simenauer, Melanie Klen e Ernest Jones e os escritórios do Instituto de Psicanálise e, por último, o 3º Andar onde se encontram os gabinetes principais da Sociedade Britânica de Psicanálise, a sala Mary Wright e a Biblioteca.

Irei percorrer esta Biblioteca no final desta viagem e sairei com o coração cheio de esperança ao ver os livros a serem tratados como elementos vivos nos corredores, pelo chão, pelas estantes, pelos sofás, em torno de estatuetas…livros com a marca de quem os doou e exemplares assinados pelo nosso Winnicott.

Na cave (nos alicerces!) encontram-se a sala Sigmund Freud e mais gabinetes para consultas.

Leio com atenção a chapa dos andares e os batismos e penso em como é importante o passado, a história para a continuidade…e que não deixa de ser curioso partir-se da cave com os alicerces da sala de Freud e terminar-se, no chapéu do edifício, com a Biblioteca. No título da chapa metálica pode ler-se Sociedade Britânica de Psicanálise (incorporando Instituto de Psicanálise)

Sou gentilmente acolhida pelo guardião arquivista Ewan O´Neil que, de imediato, me acompanha até à sala Ernest Jones. Sala ampla com uma mesa ampla sobre a qual se encontram talvez 2 ou 3 caixas de arquivo escuras. Percebo que chegou o momento! Ali está uma parte de Little.

Ewan dá-me indicações simples e precisas para a consulta do arquivo. Fico surpreendida pela agilidade dos procedimentos e suspiro de alívio quando percebo que, aqui, a burocracia não se sobrepõe ao livre acesso aos documentos, ao estudo e à confiança que é atribuída a quem se quer encontrar com Little. O que tenho de fazer é simplesmente estar recetiva e acolher o melhor e o mais profundamente que consiga este momento.

Ewan pergunta:

– “Está pronta?”

– Sim!  e mais uma vez sou surpreendida por um sinal de medo que reconheço desde infância, no meu corpo, o meu estômago dá uma volta e anuncia-me que necessita que a tarefa seja feita suavemente sem ceder à idealização e à hiper-responsabilidade. Se houve resposta ao meu gesto é porque sou merecedora de me encontrar com Little.

E Ewan continua:

– “Pensei que talvez pudéssemos começar com alguns documentos de Little sobre Arte e Psicanálise e depois ver algumas fotos das pinturas que, infelizmente, se danificaram numa grande inundação que tivemos no nosso arquivo há 2 anos”. Respondo-lhe que imagino perfeitamente o dano que terão sofrido porque tive exatamente, há dois anos, a mesma vivência no meu atelier, onde perdi trabalhos, pinturas, livros. Uma perda insuperável.

Disse-lhe “Sei bem qual a força da água no papel e na pintura”. E de Ewan, sempre na sua gentileza britânica, surgiu um “Lamento muito saber disso, deve ter sido difícil para si”.

Penso “Será que o povo inglês, sem o saber, tem integrado na sua educação e na sua ética a empatia?” Que conforto aquelas palavras. O estômago acalmou.

Curioso estar a encontrar Little começando pela evocação da destruição… e logo no primeiro escrito dactilografado à máquina intitulado “Arte e Psicanálise” pode ler-se na segunda página “O que é expresso na arte é a representação de algo – tensão, movimento e ritmo, controlo, resposta a estímulos internos e externos – memória, destruição, reparação e nova criação (….)”.

Sinto uma comoção e uma emoção fortes quando começo a ler os rascunhos, folhas escritas pela mão de Little, pensamentos escritos nas costas dos seus cartões de consultório, em pedaços de papéis rasgados citações de Chardin, Renoir, Paul Klee, John Cage, Schuman….

Tento encontrar uma metodologia para preservar o mais possível a gentileza das folhas da aspereza das minhas mãos…todos os movimentos parecem-me demasiado rudes face ao que detenho em mãos. E Ewan mantem-se num canto da longa mesa, em silêncio tranquilo…Sinto-me um pouco pateta ao aperceber-me que, também aqui, estou a tentar comportar-me como uma menina bem comportada que mostra ao pai como tem respeito pelas folhas que não são mais do que finas camadas que saíram do corpo de que quem as escreveu.

Mais há frente, num dos muitos pedaços de folhas, leio manuscrito por Little:

“Felizmente, eu fui obstinada”

A dado momento um molho de pequenas folhas frágeis A5 com o título “Experience of Hospital Aug-Sep 1953” que não é mais do que um pequeno relato manuscrito relativo à sua experiência de internamento em 1953. Aqui fica claro e digo-o em voz alta ao meu guardião Ewan: “É evidente que terei de cá voltar!”. Ewan sorri com alguma surpresa. Como é enigmático este momento em que encontramos uma pedra preciosa, em que achamos que essa pedra preciosa é evidente para todos os que estão presentes naquele momento, e numa fração de segundos depois sabemos que a pedra preciosa só existe para nós. Penso que isto não é um problema, muito pelo contrário, foi uma forma de perceber que aquela vivência será efetivamente única e singular só entre mim e Little.

Por algum motivo os nossos caminhos se cruzaram…

8 de Abril 2024

Rita Pereira Marques

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