O Adeus à Carne
O Pai Velho, os Caretos, Compadres, Gigantones e Cabeçudos convocam-nos para a folia. Por estes dias assistimos à saída à rua do Diabo. As normas sociais estão suspensas, as obrigações morais desaparecem, o caos toma conta, a ordem é subvertida, e o mundo, nos seus papéis, sofre uma perturbação. Pode-se zombar, humilhar, gozar, transgredir… Quem não se lembra das bombinhas de mau cheiro, balões de água, os ovos podres ou os estalinhos?
Durante estes dias experimenta-se uma espécie de salvo conduto, é um período de estado de graça onde estamos autorizados a sair da nossa pele e mergulhar na fantasia. As máscaras podem proteger a nossa identidade, revestindo-nos de uma outra, e viabilizam a crítica social e a representação dos piores aspectos, seja de políticos ou figuras públicas, seja do cidadão comum; a frase ecoa um pouco por todo o lado: “É carnaval, ninguém leva a mal!”.
As festividades pagãs que marcam a entrada na primavera talvez, simbolicamente, até sejam anteriores à festa grega em honra de Dionísio, Deus do Vinho e da Alegria pois que ser humano prescindiria do indulto, podendo ensaiar toda a espécie de excesso?
Os mais religiosos preparam-se para o jejum que precede à Quaresma e ao período de abstinência e sacrifício da Páscoa, mas antes do Adeus à Carne podem experimentar uma espécie de habeas corpus onde todos os prazeres são admitidos. Que dizer, no entanto, quando as máscaras perduram para lá da Quaresma?
Há pessoas que usam a máscara para se evadirem, outras que mergulham mais em si e outras há, que nunca retiram a máscara… a imitação é a sua forma de vida, não há carnaval para elas, só um mandato de representação eterna onde o Falso Self (Winnicott, 1960) domina. Se por outro lado, elas podem experimentar um sentido de protecção do mundo externo, há uma espécie de ante-câmara do Self Verdadeiro que é permeável à experimentação e ao brincar.
No filme “Eyes Wide Shut” de Stanley Kubrick a entrada do médico “Doctor Bill” (interpretado pelo actor Tom Cruise) no submundo é realizada a coberto de uma máscara, uma máscara que se vai revelando infernal, ela própria desvelando o olhar cómodo que não se voltará mais a fechar. Ainda que nessas condições, a porta giratória da antecâmara permite o regresso do personagem provavelmente indultado, mas ferido na sua inocência.
Com sorte e imaginação, é a música e a dança que dominam estes dias, mais a fantasia, a máscara, as serpentinas e a possibilidade de brincarmos, brincarmos a sério.
Ana Petrucci
Março 2025
(Escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico)
MELLO, J. (1981). O ser e o viver. Porto Alegre: Artes Médicas.
Winnicott D. W. (1960/ 2022). “Distorção do ego em termos de self verdadeiro e falso self” in PROCESSOS DE AMADURECIMENTO e AMBIENTE FACILITADOR. São Paulo: Ubu.
https://www.youtube.com/watch?v=N1N2fqmnWiQ
https://www.museudamarioneta.pt/pt/colecoes/mascaras/
https://www.caretosdepodence.pt/traje
https://apaladewalsh.com/2013/12/eyes-wide-shut-1999-de-stanley-kubrick/