Quando entramos na sala do Mezanino no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa temos a sensação que passámos por uma porta que nos muda o tamanho – é pequena a sala, demasiado pequena, para os seres ali representados. Aproximamo-nos. Nas vitrinas, a tinta-da-china pinta o Píton, a Harpia, o Leviatã, dragões, centauros, grifos, sereias e tritões desfilam ante o nosso olhar. A preto e branco e a sépia, eles vão contando uma história que existe desde sempre – desde quando? Estes seres povoam o nosso imaginário há muitos anos, pelo menos tantos, quantos os da nossa própria espécie.
A folha de sala, entretanto, vem ao encontro das nossas questões: estas criaturas já tinham surgido na Antiguidade Clássica, onde os seres míticos e humanos mais insolentes (Marsias, Héracles) são retratados como recebendo toda a espécie de provações e castigos pelos deuses; no Cristianismo e sob o jugo medieval, eles chegam-nos associados aos anjos, às noções de Bem e de Mal, ao tema da culpa mas também ao da morte – os condenados, os menos obedientes, são desenhados à entrada do submundo, forçados perante a grande boca devoradora do monstro Leviatã.
A aparência híbrida que combina elementos de espécies diferentes configura um novo ser, mais credível ao olhar do público por se ancorar nos elementos do real que todos conhecemos – o corpo de leão e cabeça de águia do grifo, o corpo de cavalo e tronco de homem do centauro, o animal alado com rosto e seios de mulher da Harpia, as impressionantes patas caprinas que não chegam para obscurecer a fisionomia humana do sátiro.
Embora parcos em número e pequenos em tamanho, os desenhos capturam-nos no meio, naquela pequena circunferência ao centro da sala; nós estamos no olho mágico sem saber se somos só nós quem espreita… e a sala, essa, permanece grande, dramática, fechada.
De onde vem esta sensação de estranho familiar? Já conhecemos estas imagens? Elas remetem para medos muito antigos, imagens agoniantes… À luz da teoria Winnicottiana o medo do breakdown (1974) funda-se na ideia de que o medo sentido no presente em relação a qualquer coisa que vai acontecer no futuro é na verdade referente a algo que já ocorreu (ou não chegou a ocorrer) – é preciso voltar a experienciar esse enigma com tudo, com o corpo, integrá-lo na presença de outrém.
Poderemos nós pensar estas imagens como aproximações a essa experiência agoniante? Poderemos nós atribuir estes desenhos à tentativa de dar previsibilidade, domar em forma, contornos, cheiros e sons esse enigma, fazendo uso do vocabulário do mundo e do vocabulário da nossa cultura? Talvez assim, neste exercício artístico, “o nada” acontecido possa estar mais contido, mais comunicado; o familiar torna-se estranho e o estranho, familiar… e assim digerimos mais um pouco do monstro.
Não nos demoramos a entreter mais a esfinge, passamos a ombreira da porta e saímos da sala, a lógica do tamanho inverte-se, a grande escadaria de mármore branco vai-se fechando atrás de nós até se perder de vista. Levamos as caudas dos dragões e as escamas, as patas de cabra e os pêlos lanosos connosco, os detalhes ganham novos contornos dentro de nós e a nossa língua parece-nos outra vez dominada. Passamos a entrada do Museu frente ao jardim, contemplamo-nos em sol e reconhecemos esses outros seres que somos nós – somos “grandes” de novo…
Ana Petrucci
Janeiro 2025
(Escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico)
http://www.museudearteantiga.pt/exposicoes/seres-e-animais-fantasticos – Museu Nacional de Arte Antiga
https://pep-web.org/search/document/IRP.001.0103A – “Fear of breakdown”, Winnicott (1974)