A Convocatória Insistente

A Convocatória Insistente

 

Celebra-se uma vez mais o 25 de Abril de 1974. E porquê? Por que faz sentido continuar a celebrar o acontecimento da Revolução? Talvez a história recente da guerra colonial, da censura, da prisão política, ainda ruja forte debaixo da arquitectura frágil da democracia? Talvez por a memória não se poder perder e ter que ser testemunhada? Talvez para celebrar as conquistas e não as tomar por aquisições definitivas? Talvez haja ambição, talvez se queira continuar o que não foi concretizado ainda, talvez se queira continuar a luta que avós, pais e amigos iniciaram lá atrás… Este dia, é uma repetição, um toque de cotovelo que não deixa acomodar, um beliscão para teimar no cuidar?

 

Podemos ainda perguntar-nos por que se assoma ao Carmo e se canta a Grândola em uníssono? Por que se desce essa Avenida e se põe o cravo vermelho ao peito? Que espaço ocupamos nesse abraço de vozes, flores e corpos? Winnicott (1951) chamou de espaço potencial a esse lugar onde gozamos da sobreposição das áreas intermediárias que nos constituem, mais ou menos um espaço interseccional das nossas existências que vamos ampliando ao longo das nossas vidas. Este lugar, de cada um e de todos, que vai do Carmo ao infinito… É lá que brincamos, é lá que no mundo velho descobrimos o mundo novo, é lá que criamos – à nossa altura, à nossa medida, no alcance singular do nosso olhar. A necessidade que satisfazemos aí, quando nos juntamos criativamente de corpo e alma, cantando e rindo e discutindo e dançando e pintando e…, traz um embalo onde a nossa própria espécie, compartilhando a realidade externa, complexa, histórica, pode, misteriosamente, enriquecer-se das múltiplas realidades subjectivas que somos… ou é ao contrário?

 

Por fim, percebemos que o 25 de Abril de 1974 foi só o começo (um grande começo!) que se reitera a cada ano. A celebração não é apenas um exercício de memória revivalista e obsoleto, mas o relembrar de que há tesouros que necessitam ser reedificados, outros que não foram descobertos e urgem ser criados, e outros há ainda que merecem ser repudiados… esta co-criação ad libidum que é o nosso presente, é simultaneamente a área da experiência cultural de que nos fala Winnicott em “O Brincar e a Realidade”.

 

As notícias podem não ser as mais animadoras pois percebemos que a luta do vai-vem criativo reverdece neste poderoso e paradoxal ciclo benigno para onde estamos insistentemente convocados – o ciclo da destruição e da construção, e da destruição e da recriação… Viva o 25 de Abril! Viva pois!

 

 

Ana Petrucci

Abril 2025

(Escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico)

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=cJij87qfdfg

https://www.sas.upenn.edu/~cavitch/pdf-library/Winnicott%20Transitional.pdf

https://www.josesaramago.org/wp-content/uploads/2021/06/discursos_estocolmo_portugues.pdf

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