Matateu

Há mais de meio século, na Amadora, subúrbio de Lisboa, viveu o Matateu. O Matateu era um “Bêbedo”, um “Pedinte”, um “Maluco”. Ainda não tinham sido inventados os “sem-abrigo”. E, a bem dizer, o Matateu tinha um abrigo, numa casa abandonada. Partilhava a casa com cinco ou seis cães. Dormiam juntos, no meio de um enorme monte de papeis e cartões, juntos. Saiam juntos deambulavam juntos. Partilhavam a comida que conseguiam. Algumas senhoras da vizinhança, “malucas dos gatos”, davam de comer aos gatos, aos cães, ao Matateu. Chegava para todos. Tinha que chegar. Eram uma Matilha e a Matilha sobrevive porque se mantém coesa. Deambulavam pelas redondezas, em busca de comer, em busca de algo que pudesse ser útil, enfim, em busca. Mas juntos.

Os meus pais saiam, de manhã, para ir trabalhar. “Trabalhar”, o que é isso? Na altura, não fazia a mínima ideia de o que isso era. Só sabia que ficava para trás. Sem Matilha. E a Matilha não deixa ninguém para trás. Portanto, se eu fiquei para trás, é porque não mereço a Matilha, uma Matilha, não mereço qualquer coisa. Os meus pais amavam-me, não eram bêbedos, não eram pedintes, não eram malucos, mas deixavam-me para trás. O quanto eu invejei a Matilha. Espero que o nosso grupo possa ser uma boa Matilha. Que possamos coabitar, serenamente, como a Matilha do Matateu. Que possamos buscar alimento intelectual. Que esse alimento possa ser da Matilha e de todos que dele precisarem, para nos nutrirmos e fortalecermos. Mas, também, alimento emocional. Que bom é sabermos que não corremos sozinhos, que corremos com a nossa Matilha, seguindo, sendo seguidos, ombro a ombro, em busca.

O Matateu já morreu, há muitos anos. Para mim criança, talvez adolescente, “desapareceu”. Espero que tenha acabado a sua vida, ao lado da sua Matilha, com os seus amigos. Assim, vale a pena viver.

Ah, esqueci-me, o Matateu era um homem, um ser humano. Rejeitado pela maioria dos “humanos”, a sua Matilha era constituída por pessoas, de outra espécie, e isso não parecia ser um problema para ninguém, na Matilha. A busca pelo sublime do que é humano, da humanidade, talvez consiga encontrar algo que nos nutra, que nos alimente, fora da nossa espécie.

O Matateu não sabia escrever. Mas eu sei.

Nuno Sacramento

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