A Cadela de Pilar Quintana editado pela D. Quixote

Damaris é uma das vítimas da crueldade e da dureza da vida. Uma lutadora resistente e tenaz que enfrenta Rogélio, seu marido, que é da mesma estirpe que a vida que leva – duro, poucas palavras e atos cruéis, presença física dominante, intempestivo como os elementos implacáveis da natureza.

Montes. Arvores. Chuva. Vento e Maré. Falésia. Cabana com frestas. Trovões. Tempestades e água, muita água. Entramos nesta história através dos olhos de uma mulher vítima representante da crueldade da vida humana. Esforço hercúleo para arrumar uma cabana/casa que teima em não sair da sua condição de miséria.

Eis que esta mulher vítima decide adotar um cachorro (cachorra vir-se-á a saber mais tarde) que, depreendemos logo na primeira página, sem a sua ação salvadora morreria como todos os outros cachorros que não resistiram aos impulsos destruidores e implacáveis humanos. Não querem que existam como seres vivos e, portanto, como humanos raça superior, têm o direito de lhes retirar a vida.

“Muitos cães da aldeiam morriam envenenados. Algumas pessoas até comentavam que os matavam intencionalmente, mas Damaris não queria acreditar que existisse gente capaz de fazer uma coisa dessas (…)”

Damaris decide adoptar Chirli, a filha que nunca nasceu, sugerindo-se que irá colocar toda a sua capacidade de cuidados, maternos e muito mais, sobre aquele ser que está, profunda e totalmente, dependente dela. Damaris acolhe esta dependência e esforça-se. Esforça-se muito, esforça-se com toda a força de uma mãe suspensa, oferece o calor do seu peito, protege a pequenina cadela do medo dos trovões, deixa lastros do seu cheiro para que o medo não se sobreponha à resistência física de uns ossinhos em formação.

-“Vais matar esse animal de tanto lhe tocares”

Damaris está disposta a tudo para proteger a sua cadela do mundo humano. Só faltava ela dizer que, para a sua cadela, ela seria a única a saber criar um ambiente totalmente adaptado à dependência absoluta deste ser. Mais ninguém senão ela. A mulher que se aproxima da idade em que todas as mulheres secam.

Dor até aos ossos. Mais e mais profunda. Uma casa derrubada pela maré viva por uma morte que vem antes do tempo…

Chirli salva – se pelo calor das mamas de Damaris – “ Os nossos já se salvaram” – …até que a força da natureza começa a cumprir o seu destino e Chirli cresce , cresce, cresce tanto que perde o privilégio do sutiã de Damaris e ganha o chão. E com o chão e o andar ganha a exploração do espaço e de todo o ambiente que a rodeia.

E começa a explorar, primeiros indícios da tão bela e doce criação dos gestos espontâneos, primeiros indícios da autonomia. Mas, para Damaris,  a cadela explora demais, demasiado depressa, com demasiada sofreguidão. Perde, por isso, o privilégio de estar no conforto do mundo dos humanos e retorna à sua condição de cadela e é ultrapassada pela preservação dos objetos de um morto: é colocada fora de casa, debaixo de um telheiro protegida da chuva e dos outros cães para não estragar “os objetos”.

Em Damaris começa a surgir laivos de culpa e de mal-estar. Sente-se culpada por remeter Chirli à condição canina, mas antes proteger um filho que nunca nasceu e um morto, que uma cadela.

Alonga-se a dureza das intempéries e da natureza humana: a implacabilidade existe nos homens e não nos animais. Damaris aceita a violência do seu marido contra si e as ações dos Homens contra eles próprios. Aniquilação da própria vida.

Adensa-se a existência e a morte para todos. E até para os animais.

Chirli, esta, continua a explorar e fortalecer-se , com a esperança inocente de um ser que está em continuidade com o ambiente. O seu gesto de existência manifesta, pela destruição singela de roupa de Damaris, de que não quer e não gosta de ser submetida aos hábitos humanos e que quer fazer a sua própria exploração do mundo lá de fora.

“Damaris continuou a mimar a cadela até que esta se perdeu no monte”

A independência é anunciada “por uma tempestade feroz, com ventos que açoitavam as telhas e trovões que faziam tremer a terra, a água escorria pelas frestas e depositava-se dentro da cabana”.

Damaris não tolera que Chirli não reapareça, uma vez que isto a impede de continuar a confirmar a sua dedicação e amor. Começa a sentir uma zanga silenciosa inexplicável face ao desaparecimento de Chirli. Em nenhum momento sente-se preocupada ou feliz com a conquista da liberdade e encontro do mundo pela cadela.

Os bichos, exércitos de formigas, adensam ainda mais. O frio entranha-se como matéria densa, baça, pesada. Continua a procurar Chirli, cada vez mais desistente e, a par desta procura, vai-se revelando (dentro e fora de Damaris)  “um enorme buraco na terra, por onde entrava o mar”.

Damaris sente-se cada vez mais zangada, vazia pela incapacidade de perceber como Chirli teria o descaramento de se afastar, de se ausentar desprezando a sua dedicação. Decide então um corte radical, alia-se ao seu violento marido e procura reconstruir uma história de reencontro do amor…de pouca dura.  Decide que quer arrumar a casa.

“Damaris não voltou a chorar pela cadela, mas a sua ausência pesava-lhe no peito como uma pedra”.

A falta era, sobretudo, a perda de um prolongamento da sua dedicação. O luto era por ela própria, por não ter conseguido defender, na comunidade cruel dos homens, a sua imagem como uma boa mãe, mesmo que fosse de uma cadela.   Não  lamentava a tragédia que era a de um ser vivo ter uma tão trágica e curta vida. Lamentava apenas o seu vazio.

“A cadela apareceu quando já ninguém perguntava por ela”.

Eis que Chirli reapareceu. Dedicada, com o rabo a abanar, com a alegria de ver a sua dona e disposta a segui-la. Para a cadela, incrível e construtivo instinto animal, a sua ausência e o seu afastamento em nada diminuíram o laço com Damaris. Pelo contrário. A cadela manifesta felicidade profunda pela dona, por esta aceitá-la de volta, não retaliar e aceita, com total entrega, o cuidado às feridas que trazia da sua ausência.

Damaris vê recuperada a sua imagem de mãe canina totalmente boa (para ela ser mãe suficientemente boa não bastava) e intensifica os cuidados e mimos para com a Chirli. Agora, que a cadela tinha voltado, iria mostrar-lhe, pelos grandiosos e únicos cuidados, que era bem preferível ficar ao seu lado do que dar azo ao instinto de crescimento e independência.

Enfrenta o olhar crítico da comunidade e do marido por tamanha dedicação. Não percebem o porquê de Damaris escolher a dedicação plena ao único ser que é capaz de lhe devolver uma imagem de mulher cuidadora em vez da destruição do seu homem (essa sim certa, permanente e, para ficar, sem se ausentar). Não percebem que Damaris está disposta a tudo para ser uma mulher que “não secou” mesmo que, para isso, tenha de ter parido um ser canino.

Chirli fugiu de novo. Novas chuvas, novos gritos.

E agora em vez da zanga começa a surgir uma fúria devastadora dentro de Damaris. Uma raiva pela fuga da cadela dar razão à premonição do marido de que Chirli voltaria a fugir parecendo que lhe era indiferente o amor e lealdade à dona.

Os seres humanos nada percebem de Lealdade e Fidelidade. Aquele ser vivo tem-nas incorporadas em todos os poros da sua pele e pêlo. Damaris não percebe isso.

Não percebe que Chirli guardará Damaris como única e preciosa dona, estando perto ou longe. Não percebe que Chirli, justamente porque viveu e incorporou os cuidados perfeitos e únicos, pode agora afastar-se.

Inicia-se uma luta trágica, dramática em que Damaris força a cadela a permanecer. Permanecer por perto, o que significa permanecer perdendo a sua identidade, liberdade e, no final, a sua vida.

“Não a perdia de vista: se se afastava, chamava-a para a obrigar a voltar para o seu lado; e amarrava-a todas as noites, quando ia à aldeia ou se, por estar ocupada, não podia prestar-lhe atenção”.

“(…) enlaçou-a pelo pescoço com o mesmo nó que usava para amarrar a canoa, atou-a a uma das colunas do telheiro, sentou-se ao seu lado e esperou pacientemente que a cadela tentasse sair”

– “ Isso é um nó corrediço: vais enforcá-la”.

Não foi aqui que a morte apareceu, será mais à frente. Este foi simplesmente o anúncio do final. Não há escapatória, porque Chirli não pode escapar à força da retaliação e da raiva da independência.

Será uma questão de tempo, após múltiplas fugas, uma após outra, em que Damaris vai aumentando a submissão e o desespero por não entender que o gesto da independência é natural em todos os seres vivos e tem de ocorrer custe o que custar. Até se custar a vida.

“Deixou-lhe de fazer festas, de lhe separar os melhores restos, de lhe dar atenção quando abanava o rabo, de se despedir dela à noite e até de acender a luz do telheiro”

Damaris fica encarquilhada na sua tristeza, raiva. “Sentia que a vida era como o canal e que lhe tinha calhado ter de o atravessar com os pés enterrados na lama e a água pela cintura, completamente sozinha, num corpo que não lhe dava filhos e só servia para partir coisas”.

O golpe final foi quando, após mais uma das fugas,  Chirli a cadela, aparece prenhe e apresenta ainda mais uma capacidade do que ela…até uma cadela pode ser mais capaz em gerar vida do que Damaris mulher seca.

“ A cadela esforçava-se por estar sempre ali e segui-la da cabana para o telheiro, do telheiro para o tanque e do tanque para a cabana”. 

Mas nem a fusionalidade domesticada servia para recuperar o laço que Damaris virá quebrado pela cadela com a sua conquista da independência. O corte tinha sido radical e irreversível. Estava em curso o fim.

Talvez Chirli sentisse esse prenuncio, pois, depois de parir os filhos em total abandono e solidão, procurou comê-los para protegê-los da dor que viria mais à frente em ficarem sem mãe.

Damaris tentou ludibriar o destino e tentou encontrar, desesperadamente e por várias vezes, outro dono capaz para Chirli. Mas a cadela, agora não fugia. Pelo contrário regressava sempre para o desespero da dona. O desespero transformou-se em agonia insuportável quando a cadela apareceu prenhe novamente.

Golpe final.

(…) continuou a apertar e apertar, lutando com todas as suas forças enquanto a cadela se retorcia diante dos seus olhos, que pareciam não reparar no que viam e que apenas registaram as tetas inchadas do animal.”

O que restava agora era apenas “limpar os restantes armários, encerrar o soalho de madeira e lavar a roupa da cama”. Arrumar a casa.

Arrumar a casa e dialogar com a voz que lhe dizia que nenhum dos humanos que conhecia podia castigá-la como merecia.

Rita Pereira Marques

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